Teresópolis 2015: Difference between revisions

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Os boatos que correm nas portas dos colégios e ruas de Teresópolis são os mais variados possíveis. A onda de alarmes falsos só vem servindo para que os pais dos alunos fiquem cada vez mais apavorados. (...) Entre a conversa de pais e professores já foram ouvidas diversas histórias. As mais macabras, por exemplo, são as de que uma pessoa estaria ligando para as direções das escolas, afirmando que três estudantes de cada colégio serão assassinados. Outros contam que uma pessoa teria ligado para uma juíza do Fórum de Teresópolis, dizendo que ele pertenceria a uma seita e precisaria matar sete jovens.  
Os boatos que correm nas portas dos colégios e ruas de Teresópolis são os mais variados possíveis. A onda de alarmes falsos só vem servindo para que os pais dos alunos fiquem cada vez mais apavorados. (...) Entre a conversa de pais e professores já foram ouvidas diversas histórias. As mais macabras, por exemplo, são as de que uma pessoa estaria ligando para as direções das escolas, afirmando que três estudantes de cada colégio serão assassinados. Outros contam que uma pessoa teria ligado para uma juíza do Fórum de Teresópolis, dizendo que ele pertenceria a uma seita e precisaria matar sete jovens.  
==Protestos organizados por Sônia Ramos==


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Latest revision as of 00:48, 16 October 2015

Logo após a invenção e difusão da rede mundial de computadores uma legião de curiosos começou a buscar páginas eróticas na internet, achando todo tipo de excentricidade para encher suas mentes vazias, inclusive informações sobre um fetiche clinicamente chamado hipoxifilia (simulação de estrangulamento objetivando atingir estados alterados de consciência). Por incrível que pareça a técnica que promete deixar alguém doidão sem gastar dinheiro com entorpecentes se tornou um tópico de difusão viral e ficou tão popular que virou brincadeira de criança. Na virada do milênio os docentes da Inglaterra já estavam engajados em operações para reduzir casos de acidentes graves onde estudantes aparecem mortos com cadarços de tênis enrolados no pescoço... No Brasil ninguém sabe, ninguém viu, tem que se linchar o bode expiatório, encontrar o papão papa anjos.

Outubro de 2000

No mês de outubro do ano 2000 duas alunas da Escola Estadual Edmundo Bittencourt, em Teresópolis (RJ), morreram sufocadas por estrangulamento. Em ambos os casos o cadarço de um pé do tênis integrante do uniforme escolar que elas usavam foi removido e apertado no pescoço até causar a morte. Iara da Silva, 14 anos, desapareceu dia 04/10/2000, após sair da aula, e Fernanda Venâncio, 17 anos, dia 11/10/2000, ao ir para a aula. O corpo de Iara foi abandonado ao relento, num matagal na Vila Muqui, localizada atrás da escola. Fernanda foi achada morta por um boiadeiro seis dias depois do crime, caída numa trilha no mato na localidade de Quinta da Barra. A última vitima era enteada de Sônia Ramos, 42 anos à época, uma ativista da “Batalha Espiritual” – espécie de ação doutrinária organizado pelas igrejas pentecostais, – que se apresentou à imprensa como ocupante (voluntária) do cargo de comissária da Vara da Infância e Adolescência do Fórum de Teresópolis.

Por meio do apoio da imprensa, organização de passeatas, etc., Sônia viria a conseguir que a investigação chegasse à Brasília em menos de um mês, e que a linha investigativa seguisse sua hipótese de haver ligação entre as mortes e o hobby de jogar RPG, o qual supostamente existe “para cooptar jovens para drogas e satanismo”. A idéia estapafúrdia não era nova. No documentário Devil Worship: The Rise of Satanism (1989), da Buenna Vista Filmes, produzido por Cary Matnnsclana, uma autoridade policial – Sargento Rand Emon, do departamento de polícia de Baldwin Park, Estados Unidos, – afirma ser possível “aprender feitiços no próprio jogo demoníaco” chamado “RPG”. O fato é confirmado pela ex-bruxa e atual missionária Doreen Irvine e pelo ex-bruxo, ex-mórmon, ex-homossexual, ex-vampiro, ex-etc., atual pastor Willian Schnoebelen, que diz haver aliciado crianças e adolescentes recrutando-as para sua ex-seita clandestina de viciados satânicos se apresentando como mestre narrador de RPG.

Em 1991 o Pastor Mark I. Bubeck, presidente do Centro Internacional de Aconselhamento Bíblico, em Sioux City, Iowa, citou um memorando interno da sua organização onde se afirma que “muito envolvimento com jogos de fantasia ou de desempenho de papéis” é um forte indício de que o adolescente tem contato com rituais satânicos e atividades ocultas, porque “jogos como Dungeons & Dragons (D&D) servem de base para experiências espíritas sérias”. Após ouvir semelhante barbaridade, um jogador telefonou para o programa de rádio do pastor Bob Larson, na esperança de fazê-lo entender que um jogo de fantasia “não confere a ninguém certificado de bruxo”. Após longa e infrutífera explanação teve de ouvir que “a Coalizão Nacional sobre Violência na Televisão afirma que D&D já produziu mais de cinqüenta mortes de adolescentes” porque o RPG ensina aos menores como aperfeiçoar-se na arte de assassinar premeditadamente. O pastor Willian Schnoebelen critica a garantia constitucional à liberdade religiosa, pois – em sua opinião – havendo somente uma fé verdadeira, todas as demais seriam artifícios do diabo. O mesmo problema recairia sobre outros atos permitidos como, por exemplo, jogar RPG. Ele escreveu:

Desse modo, tal como ocorre com muitas outras formas de comportamento que são “inofensivas” e “protegidas pela própria Constituição”, como, por exemplo, o jogo de RPG denominado Dungeons and Dragons, esses grupos satânicos são portas de entrada para variedades avançadas e sangrentas de satanismo.

Os adultos se valem de vários métodos para seduzir os jovens, entre os quais drogas, sexo e o infame jogo de RPG Dungeons and Dragons. É triste dizer, mas às vezes até mesmo professores e parentes satanistas fazem uso de sua influência para seduzi-los. Este autor foi professor durante dois anos, na época em que era feiticeiro. Fiz de tudo o que pude para atrair para o ocultismo os estudantes dos dois últimos anos do ensino médio que estavam sob meus cuidados.

Também o jogo Dungeons and Dragons é usado com freqüência por professores e lojistas feiticeiros para selecionar jovens que tenham “aptidão” para a feitiçaria. As personagens que os disputantes assumem no jogo são um excelente treinamento para o feiticeiro noviço.

Antes da morte de Fernanda Venâncio, sua madrasta, Sônia Ramos, teria encontrado o livro Gurps: Módulo Básico, recomendado para maiores de dezoito anos, entre as pertenças de seu próprio filho maior de idade e proibiu-o de jogar todo e qualquer sistema de RPG. Ao invés de destruir o livro identificado por ela como literatura não cristã, Sônia Ramos manteve-o como obra de referência e, numa idealização descontextualizada, citou-o perante a imprensa como prova de que a má temática estava estreitamente relacionada ao seu problema pessoal:

“Existem várias maneiras de sufocar uma pessoa. Você pode manter seu nariz e boca fechados com as mãos, cobrir seu rosto com um travesseiro ou outro objeto conveniente, ou constringir suas carótidas (que se encontram dos dois lados da garganta junto à articulação da mandíbula). (...) Todos estes métodos exigem que a vítima esteja amarrada ou de algum outro modo indefesa”.

Sem fazer diferença entre os sistemas D&D, GURPS, storyteller, etc., Sônia Ramos simplesmente decidiu condenar o RPG como um todo.

Recebi esse livro e fui estudar o jogo. Fiquei muito assustada quando cheguei à página que ensina a matar por estrangulamento. Tem uma foto que mostra um enforcamento, através de um puxão por trás. A morte acontece porque um osso próximo à garganta é quebrado. O laudo de Fernanda confirma que ela foi morta por trás, por estrangulamento e asfixia com o uso de uma corda.

As edições do Gurps: Módulo Básico que as quais eu tive acesso não tem fotografias, só desenhos, e nenhum deles representa o personagem estrangulado. Contudo é verdade que o jogo informa que personagens das tramas fictícias morrem caso um agressor obtenha um determinado sucesso nos dados durante uma tentativa de estrangulamento de outro personagem igualmente fictício.

Em Teresópolis a população afobada acusou o tráfico de drogas – que até podia ter culpa de muita coisa, mas não disto. Então a família da primeira vitima rapidamente se mudou do bairro Jardim Meudon. (Por que será?) Sônia Ramos e seu esposo, Edmar Ramos, ficaram sob proteção policial durante alguns dias porque chamar deus e o mundo para pisar nos calos de quem estava quieto não costuma trazer sorte. Durante o enterro da enteada, em 18/10/2000, a madrasta alegou estar sendo perseguida por três homens e fez um discurso acalorado:

O luto que estamos enfrentando é também pelas famílias que possivelmente estejam com seus filhos desaparecidos. A Fernanda era uma menina calma, que saía pouco e, quando o fazia, nós sabíamos para onde ela ia. Estamos nos sentindo ameaçados e queremos que Teresópolis volte a ser a cidade tranqüila que sempre foi.

Infelizmente, mas compreensivelmente, a comissária não se encontrava em condições emocionais para ter um julgamento imparcial. Uma menina que ela cuidava como se fosse sua filha morreu de um jeito horrendo e precisou ser reconhecida num triste estado de decomposição. No dia do enterro, talvez durante o velório, Sônia foi procurada por Leni Azevedo de Domingues, mãe de Liliana Azevedo Domingues, 17 anos, que disse – em pânico – que sua própria filha, estudante da mesma escola, desapareceu seis dias depois de Fernanda, assim como esta desapareceu seis dias depois de Iara. Finalmente, Leni explicou que Liliana jogou RPG com os amigos antes um dia antes de sumir. Isto despertou em Sônia todos os seus medos mais profundos, aprendidos na igreja pentecostal.

O homem hodierno sabe que ficção não se mistura com realidade; contudo, a circunstância era demasiadamente caótica para esperar que mães abatidas pela ausência conseguissem raciocinar ordenadamente. A verdade real é que, em 17/10/2000, a jovem Liliana fugiu de casa com o namorado Rodrigo Victorino Nascimento, 16 anos, e com a amiga Eline de Oliveira França, 16 anos, que sabia da existência de um casarão abandonado na Ilha Porchat, no bairro São Vicente, em Santos, no litoral de São Paulo, onde pretendiam viver.

Eline escreveu uma carta para Fátima de Oliveira, sua mãe, informando que estava procurando emprego. No dia da fuga Rodrigo também deixou um bilhete para a mãe, Lucia Victorino, informando o que pretendia fazer. Liliana não falou nem escreveu nada para ninguém, deixando apenas um jogo de interpretação de papéis (RPG). Assim surgiu a idéia descabida onde os jovens desaparecidos teriam apostado a vida e perdido a partida num jogo diabólico! Leni convenceu Sônia de que Liliana deveria ter sido a terceira vitima do serial killer. Com as cabeças cheias de ilusões, elas começaram a acreditar que uma seita satânica causava tudo de ruim que acontecia em Teresópolis e que os homicidas coagiam algumas das novas vitimas a escrever bilhetes de despedida para forjar um álibi.

Sônia, Leni, Lucia e Fátima se uniram na intenção de encontrar os corpos dos outros desaparecidos e – essa é a parte problemática – cobrar providências à polícia, acusando todos àqueles que lhes pareciam malévolos. Mesmo com tanta pressão, o detetive Alex Martins, chefe do Setor de Investigações da 110A DP, tinha pouca fé nas acusações contra góticos e/ou jogadores de RPG, preferindo investigar certo “trabalhador ” que não andava pelas ruas vestindo uniforme de Satanás. O major César Vieira, subcomandante do 30º BPM tentou tranqüilizar Leni, Lucia e Fátima, informando que a estória contada nos bilhetes deixados por Rodrigo e Eline era verossímil. Mas Sônia convenceu o delegado Paulo Passos a enviar equipes da Delegacia de Homicídios, do Rio de Janeiro. Agentes da Polícia Federal investigaram “sites de adoração ao Demônio” e subiram a serra para exumar os corpos das estudantes em busca de indícios de rituais satânicos. Sônia chamou a imprensa e continuou a se queixar pelo fato do major César Vieira não achar o jogo suspeito, preferindo não relacionar os casos de assassinato com o dos adolescentes que viajaram sem autorização.

A polícia não está querendo juntar os casos, pelo menos por enquanto, mesmo porque não existem provas. Mas eu e toda a população de Teresópolis temos certeza de que a seita existe e é muito grande.

Sem um serial killer identificável para oferecer à turba durante a temporada de malhação do Judas, parecia necessário sacrificar um bode expiatório para que a paz retornasse à região serrana. Jameson Pereira Barbosa, 19 anos, estudante de medicina, mestre narrador do jogo Vampiro: A Máscara, foi levado para a 110ª DP (Teresópolis) sexta-feira, dia 20/10/2000, onde prestou um depoimento de seis horas! A polícia apreendeu livros de RPG em sua residência, incluindo Vampiro: A Idade das Trevas, Guia dos Jogadores para o Sabá e outros suplementos da linha storyteller publicados pela editora White Wolf. O detetive Alex Martins não ficou convencido de que tudo aquilo era apenas partes dum jogo comum e decidiu manter o rapaz preso preventivamente até ele terminar de ler a pilha de livros em inglês e português: “Eu confesso que nunca tinha visto material dessa espécie”.

De acordo com Alex Martins, o acusado fazia jus à alcunha “Vampiro” porque dormia numa cama de madeira pregada na parede a um metro do chão. Assim ele parecia um boneco numa prateleira. Fotos e filmes do material a ser analisado pela polícia, divulgadas pela imprensa, exibiam periódicos de igrejas pentecostais entre os jogos, todos com tema de batalha espiritual, recheados de matérias sobre “devoção ao diabo” e “sacrifício humano”. (Teria isto sido entregue por Sônia Ramos na intenção de instruir a polícia sobre o posicionamento religioso?) Quando Liliana, Rodrigo e Eline foram trazidos vivos de volta à Teresópolis, a acusação de homicídio contra Jameson foi retirada, mas ele continuou preso preventivamente, acusado de trafico de drogas, embora nenhuma droga haja sido encontrada em sua posse, só porque uma menininha acuada alegou que o “Mestre de RPG” tinha distribuído maconha grátis!

Alguns rapazes do grupo de Jameson prestaram depoimento no fim de semana. Em 24/10/2000, pela manhã, a juíza Inês Joaquina Santana, titular da Vara da Infância e Adolescência do Fórum de Teresópolis, começou a ouvir “todos os jovens que se vestem de preto na cidade”, com previsão de continuar tal trabalho por pelo menos três dias. No final da tarde policiais militares atenderam a uma denúncia anônima sobre o abandono de roupas pretas sob um banco na Praça Baltazar da Silveira, em frente à Igreja de Santa Tereza, no Centro de Teresópolis. Foram apreendidas quarenta e nove blusas e uma saia. O grupo de Jameson havia decidido abdicar ao hobby e ao antigo estilo de vida por medo de linchamento. Hoje todos os ex-góticos vestem roupas coloridas.

Os jovens de Teresópolis tiveram que mudar os seus hábitos e não permaneceram mais nas ruas nem na Praça Baltazar da Silveira, no Centro, após as 23h. O Juizado da Infância e da Juventude ouviu mais de 100 rapazes, que confirmaram a versão da existência de uma seita satânica. (...) Mesmo com a prisão do suspeito, a polícia vai continuar investigando os hábitos do grupo gótico identificado como “grupo de preto”.

A polícia apurou que, em Teresópolis, cerca de quatro mil jovens jogavam RPG. Mais de cem foram ouvidos pelo juizado especial, confirmando a existência de minorias de góticos e satanistas entre eles. O grupo de Jameson costumava se reunir diariamente para o jogo de mesa comum no velho coreto da Praça Baltazar da Silveira, onde “a polícia sempre aparece para desfazer as reuniões”. Depois iam ouvir música no bar temático Psichodellic Clubbers, de Rodrigo Feo, 29 anos. Em Pimenteiras existem casarões sem portas ou janelas, abandonados a mais de quinze anos. Pareciam lugares perfeitos para jogar a modalidade live action! Cada um foi redecorado com frases de terror pichadas nas paredes e tetos, a fim de parecerem covis de vampiros fictícios. O jornalista Paulo Carvalho leu:

“Não estamos preocupados com o que possa acontecer aqui dentro. Queremos apenas diversão, bebida e muita liberdade”. • “Pra que o medo? Se o futuro é a morte?” • “Não entre. Você quer entrar, então venha, mas com sangue”. • “Eu preciso sempre, muito, de sangue, sangue, sangue”. • “Sangue foi e sempre será o meu sustento. Minha fonte de vida. Quero sangue. Nada vai me fazer parar enquanto não descobrir como adquirir grande quantidade”.

A jornalista Rozane Monteiro também leu “Satã é o rei” num cômodo do Casarão das Pimenteiras. Fora de contexto, tudo isso levou os mais medrosos e supersticiosos às raias da loucura.

Testemunhas contam que as reuniões do grupo de jovens, a maioria de classe média alta, são realizadas em três casarões abandonados no bairro Pimenteiras e até mesmo no cemitério da cidade. Todos ficam vestidos de preto e gritam muito durante os encontros. Os casarões não possuem luzes e são todos pichados com frases de terror. Uma lareira em cada um deles é usada para acender fogueiras. (...) L. admitiu que maconha e cocaína sempre foram liberados com o “pessoal de preto”. (...) L. disse que não há problemas para se freqüentar grupos góticos, como eles se denominam. Basta apenas que o visitante aceite todas as “doideiras” do grupo e não tenha preconceitos. Beber, muito, é outra grande característica do pessoal. Encontrada poucas horas depois do primeiro contato, L. já estava alcoolizada e com sinais de que havia consumido drogas.

Uma única menor de idade entre quatro mil pessoas, que preencheu ficha na intenção de jogar RPG durante um único dia afirmou que, em Teresópolis, a coletividade traficava drogas e a imprensa acreditou. Ora, se isso fosse verdade a cena lá teria de ser muito diferente dos encontros semanais abertos ao público no Tijuca Tênis Clube e nos gigantescos eventos contemporâneos promovidos no Rio de Janeiro pela Gibitería e Bárbaras Magias, onde a maioria esmagadora dos freqüentadores não bebia nem cerveja e não fumava nem tabaco.

Jameson foi mencionado por outros adolescentes, de fora de seu grupo, que prestaram depoimento no juizado especial. Segundo Sônia Ramos, “ele seria o rapaz visto bebendo sangue humano e comendo cadáveres no cemitério”. Jameson negou tudo, exceto o fato de jogar RPG. Por outro lado, vários trotes demonstravam a habilidade de certos moleques em importunar Sônia Ramos.

Os boatos que correm nas portas dos colégios e ruas de Teresópolis são os mais variados possíveis. A onda de alarmes falsos só vem servindo para que os pais dos alunos fiquem cada vez mais apavorados. (...) Entre a conversa de pais e professores já foram ouvidas diversas histórias. As mais macabras, por exemplo, são as de que uma pessoa estaria ligando para as direções das escolas, afirmando que três estudantes de cada colégio serão assassinados. Outros contam que uma pessoa teria ligado para uma juíza do Fórum de Teresópolis, dizendo que ele pertenceria a uma seita e precisaria matar sete jovens.


Protestos organizados por Sônia Ramos

Em 15/11/2000 um grupo liderado por Sônia Ramos e pessoas ligadas ao Centro Brasileiro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente percorreu as principais ruas de Teresópolis num protesto contra a morte de adolescentes. Cerca de 80 manifestantes se concentraram em frente ao Fórum de Teresópolis. A manifestação durou mais de uma hora. Depois a passeata passou em frente ao apartamento do prefeito Mario Tricano e terminou em frente à delegacia. Um ano depois Sônia Ramos ainda descrevia o RPG como uma variedade de roleta russa. Em 2013 ela inaugurou e conduziu a “Campanha Nacional Pela Redução da Maioridade Penal – Plebiscito Já”, com apoio do deputado Campos Machado. Até hoje esta senhora continua respondendo aos críticos usando como argumento de autoridade citações do livro Stanism: the Seduction of America's Youth (1989), de autoria do Pastor Bob Larson, publicado no Brasil em 1994 pela Editora Vida.

Novamente me pego lendo e buscando na internet explicações para comportamentos tão violentos dos jovens. Eis que me deparo com as alegações de um indignado leitor e jogador de RPG, que condena o que foi dito durante o desenrolar do processo das meninas mortas em Teresópolis. Por coincidência, nesta semana vi na TV mais um caso de outra jovem que encontrou a morte. Uma prima alega que elas participaram de um jogo de RPG, e logo após a moça foi encontrada morta num cemitério abandonado. Mais coincidência é que na mesma semana das mortes de Teresópolis, que completam um ano.

A pessoa que escreveu o texto (...) não passou pelo desespero de perder uma filha de forma brutal, por isso nem deveria se pronunciar. (...) Diversos psicólogos americanos já fizeram pesquisas sobre crimes cometidos por jovens influenciados por literatura e filmes brutais. (...) Quando se fala do jogo fala-se do que nos foi apresentado no momento, um jovem que já engravidou três menores sem ter nenhuma responsabilidade, já ofereceu drogas a outras tantas e se aproxima destas jovens por intermédio do jogo de RPG, onde é chamado de “Mestre”. (...) As meninas que participam dos “jogos” ou “rituais” que ele lidera declaram que nestes encontros rola álcool, drogas e inclusive se cortam para usar o sangue. O RPG é (...) um veículo para pessoas que usam drogas facilmente perderem o controle, se entregarem a uma fantasia. (...) Esperemos que a polícia chegue a uma conclusão sobre os fatos. Isto não trará nossas filhas de volta, mas pelo menos servirá de exemplo para outros jovens incautos. Só lamento que a minha filha tenha entrado de “gaiata”, pois se realmente foi uma vítima foi inocente, pois não jogava RPG e nem freqüentava rituais de magia.

No texto acima Sônia Ramos se referia outro caso lastimável onde, mais tarde, foi provada a inocência dos jogadores de RPG... Pensemos: Se um adolescente tem vida sexual ativa e provocou a concepção de filhos em mais de um útero diferente ele deve ser capaz de cometer qualquer outro ato reprovável? Todas as pessoas de seu círculo social devem responder como co-autores de homicídios presumidos e trafico de entorpecentes hipotéticos? Todos os estranhos que freqüentam o mesmo bar contraem o mal por osmose, como se fosse gripe? Todos os desconhecidos, mesmo que sejam astronautas, estariam infectados se lessem o livro favorito daquele que passou pela triagem de bodes expiatórios? Existe apenas uma circunstância onde um jogo de representação de papéis é chamado de “ritual”. Isto é, quando o jogo pesado (blood sports) da cena BDSM adapta algum outro tipo de jogo de representação de papéis, a exemplo do RPG, desviando sua finalidade. Mas, considerando que Fernanda Venâncio era uma jovem educada nos preceitos do cristianismo, ela não tinha motivos para se envolver com um improvável entusiasta da cena BDSM, onde se busca prazer na tortura consensual e existe a perigosa técnica da simulação de estrangulamento com um cadarço de tênis (hipoxifilia). Enfim, na falta de culpados, já exaurida a longa lista de suspeitos, não desejamos imaginar tal moçinha estrangulando sua melhor amiga secreta num acidente fatal e depois cometendo suicídio sem conseguir suportar a dor na consciência. Portanto não cabe conjugar as palavras “jogo” e “ritual” num contexto de homicídio culposo ou doloso.

O bicho papão volta para debaixo da cama

O serial killer que matou Iara da Silva e Fernanda Venâncio nunca foi preso. Em 2013 todos os muitos suspeitos anteriores (um marceneiro, um jardineiro, um cigano, etc.), haviam sido provados inocentes. Não foi por falta de esforço e boa vontade da polícia que a coisa restou irresoluta. O demônio de Sônia Ramos evaporou e voltou ao Inferno, rindo muito de tudo isso.

O ponto principal não é mais quem matou duas alunas da Escola Estadual Edmundo Bittencourt e sim o perigo de exclusão social a que foram expostos quatro mil inocentes. O caso foi amplamente explorado pela mídia, relacionando um hobby que exige lucidez dos participantes ao tráfico de drogas. Jornalistas falavam em “rituais satânicos”, “culto ao vampirismo” e sacrifício de moças em idade escolar. O ato de escrever utilizando informações erradas, com bases fracas, contribui para idealizações contrárias da realidade do meio, dando margem para descriminação e criação de preconceitos contra determinados modos de agir e pensar. O estranhamento é devotado especialmente às pessoas que ao jogarem exteriorizam o que pensam, utilizando os preceitos do jogo de forma levemente desviada, talvez até mesmo “vivendo” seus personagens; assim como poderiam estar jogando Street Fighter e praticando artes marciais numa academia.

Diante dum quadro tão delicado seria necessário estudar e verificar se o que está acontecendo é aquilo mesmo, antes de opinar, e não apenas manipular as palavras para gerar ainda mais conflitos. A caça às bruxas se alastrou devido à repercussão nacional e, logo, todos os jogadores de RPG do Brasil estavam sofrendo discriminação. A apresentação das provas pela perícia policial de que nada daquilo era verdade teve pouquíssima repercussão e hoje resta esquecida. Detalhe: Nos eventos do Rio de Janeiro tinha wicca e umbandista de verdade até dizer chega; indo só por diversão. Quando eu jogava com status de mestre misturava livros de São Cipriano com suplementos de RPG e os “normais” adoravam campanhas diferentes com personagens espetando boneco vodu e fazendo feitiço de amarração para trazer a NPC amada em trinta dias. O Brasil é um país laico, mas, até onde sei, ninguém nunca foi convertido por causa disso.