Impressões Etnográficas do Tribunal do Juri do Assassinato de Aline Silveira Soares

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Após sucessivos adiamentos, nos primeiros dias de julho de 2009 foi realizado o julgamento do “caso Aline”, atraindo novamente olhares de todo o país para a histórica cidade de Ouro Preto, cenário do terrível assassinato ocorrido oito anos antes. A capixaba Aline Silveira Soares foi assassinada em 14 de outubro de 2001 durante a tradicional Festa do 12, promovida pelas repúblicas estudantis da cidade. As circunstâncias em que a vítima foi encontrada, nua e esfaqueada, abandonada em um cemitério da cidade supostamente em posição de crucificação, foram ao longo das investigações unidas a uma série de elementos, construindo diferentes especulações e narrativas caleidoscópicas, veiculadas pelos operadores do direito e pela imprensa, alimentando o mistério em que o caso foi envolvido. Tais narrativas convergiram e foram performatizadas e avaliadas após oito anos, durante o julgamento dos quatro acusados, três rapazes então estudantes da cidade e a prima da vítima. Este julgamento foi eleito como objeto de pesquisa de mestrado em antropologia social, em uma intersecção da antropologia urbana, da antropologia da performance e da antropologia do direito. Intersecção que proporciona levantar, a partir de um estudo de caso, questões pertinentes a diferentes linhas temáticas e a temas caros à disciplina, como família, gênero, as relações entre mídia e o Estado, dimensões estéticas e simbólicas de práticas institucionais. Ao longo da pesquisa, pretende-se discutir como as diferentes narrativas produzidas em função do “caso Aline”, em suas diferentes montagens, promovem o encontro de experiências sociais e imaginários diversos em um esforço coletivo de produzir sentidos e reparação, mas que deixa um rastro de ruídos e tensões, de questões abertas. Busca-se analisar como um julgamento extraordinário, até para os atores para quem o Tribunal do Júri é parte de um cotidiano, cria em suas tensões e obscuridade epistemológica um locus para uma muldimensionalidade de narrativas que alinham elementos dispersos em uma narração capaz de preservar o inacabamento do passado e a imprevisibilidade do presente.

Para uma aprendiz de antropóloga como eu, estranha à cidade, nas visitas a Ouro Preto sentia ainda as incertezas da atitude apropriada ao novo campo, a de flâneur que se deixa perder ou a de caminhante atenta, buscando sentido em cada passo sobre os paralelepípedos rotos. Um longo caminho ladeira abaixo conduz da rodoviária ao Fórum, passando pela Praça Tiradentes e a Rua Direita, sistema nervoso central da cidade, de onde partem impulsos para os circuitos e trajetos de Ouro Preto. Antes porém encontra-se o largo da Igreja Nossa Senhora das Merçês e Misericórdia - ou Mercês de Cima - e seu pequeno cemitério, ponto em que alguns turistas paravam para se recuperar do calor atípico de julho, das caminhadas íngremes e para bater fotos panorâmicas da cidade, em sua maioria sem saber que foi aí que se desenrolou o crime. O olhar informado reconhece que o muro que esconde o cemitério não faz parte do cenário original, também ele parece uma pequena anomalia em uma história maior e mais antiga. No começo do dia, percorre-se a cidade mais depressa que a luz do sol, que gasta boa parte da manhã para alcançar as casas e ruas mais estreitas. O serviço no Fórum começa cedo, mas em seus quatro dias o julgamento só iniciou seus trabalhos sob o augúrio da luz vespertina.

Policiais isolaram a rua, contendo o círculo mágico do julgamento no quarteirão entre a esquina do Fórum e o prédio cor de rosa da Promotoria Pública. Era preciso evitar o que ocorreu no último adiamento de 25 de maio, quando um grupo revoltado vaiou e acossou os réus e um parente da vítima foi preso, o que levou os advogados a pedir – sem sucesso – o desforo do caso e sua transferência para Belo Horizonte. Dentro do círculo estavam também estudantes de direito e curiosos. E salientando a proporção dos eventos para os transeuntes e turistas, os jornalistas, com os carros e vãs de suas respectivas agências, uma amostra dos principais veículos de comunicação do estado e do país. A expectativa pela chegada dos réus era grande; seus advogados observavam, concediam entrevistas; os populares tentavam transportar seus olhares para a lente das câmeras da imprensa, que pareciam ter mais certeza de onde apontar. As câmeras mobilizam diversos discursos e práticas, são parte importante na construção dos sentidos que o evento do julgamento proporcionou. Os advogados de defesa buscavam proteger a imagem de seus clientes, reforçando que os réus se mostrariam apenas quando as câmeras fossem desligadas.

Subindo as escadas e passando pelos balaústres pintados com cores primárias e pela sala de audiência, convertida em quartel da imprensa, chega-se ao salão do julgamento. Antes da sessão começar a assistência conversava animada ou espiava a rua nos balcões. Alguns liam o jornal do dia enquanto esperavam para testemunhar a manchete do dia seguinte. Outros comentavam as roupas chamativas da promotora, que diziam ser brava como a juíza, uma figura vistosa de cabelos negros como a toga e olhar severo. No maior Júri da história recente de Ouro Preto, mesas extras foram necessárias para acomodar os quatro co-réus e seus advogados. Os familiares e conhecidos de Aline chegaram ao salão portando suas camisetas brancas, com a foto de Aline e dizeres pedindo justiça. Seus corpos encarnavam a indignação, a injustiça e o cansaço pela longa espera, ainda que entre o grupo estivessem crianças que provavelmente não eram nascidas na época do crime. A alegada morosidade parecia mais um motivo para a condenação, pois acessava o imaginário da impunidade presente nas representações sobre o judiciário brasileiro. Na fileira oposta de bancos, um outro grupo experimentava um drama intenso, a ser decidido naquele julgamento. As mães dos réus rezavam de cabeça baixa, chorando contidas, atraindo olhares de comiseração suspeita.

O começo do julgamento foi a encenação de um grande embate jurídico, no qual os advogados de defesa esgrimavam com a Justiça, entregando requerimentos e questionando procedimentos tomados. Executavam o playtest das regras do jogo antes que sua parte principal se iniciasse propriamente. Os estudantes de direito acompanhavam atentos, comentando as mudanças no Código do Processo Penal, que constitui as principais regras formais do jogo. O resto da assistência, com pouco entendimento dos lances, trocava versões que correm pela cidade sobre o caso. Dizia-se que havia “muito desse negócio de RPG na cidade e o delegado, que era meio maluquete, queria dar um jeito no RPG”. Outros narram o encontro de Aline com um traficante. Um dos advogados de defesa argumentou fazendo ironias e chacotas com os autos do processo, “isso é um samba do crioulo doido!”, atraindo de volta a atenção de todos. A juíza advertiu a assistência que ria avisando que “isso aqui não é teatro!”. Na entrada dos réus os pescoços se esticam e se comenta “parece um casamento”. A aparência comum dos réus decepcionou alguns, indignou outros, despertou outras metáforas cênicas, como “isto aqui é uma palhaçada”.

As narrativas no julgamento floresciam das peças, dos testemunhos, das evidências e dos argumentos que reúnem em status de presente elementos dispersos pela ótica linear do tempo, interrompendo com um “choque” o fluxo contínuo da história para aproxima-los numa imagem de constelação. Os corpos dos réus eram a materialização deste choque, sendo submetidos a uma economia de poder que as câmeras da imprensa tentavam apreender. Surgiram dispositivos de construção do criminoso, da personalidade voltada para o crime. As testemunhas de acusação descreveram hábitos estranhos de ré, roupas pretas, gostos duvidosos. À testemunha que afirmava a agressividade da ré por seus cabelos tingidos de vermelho foi chamada a atenção por sua própria coloração, digna de uma tintura tonalidade 6.66. Morte em família e a espetacularização do crime promoviam a conexão da ré com a figura também loira de Suzane Richtoffen, condenada pelo assassinato de seus pais. No corpo de outro réu, buscavam-se evidências de oito anos atrás, se trocou de roupa, se as marcas de seu corpo são fruto de um encontro heterossexual legítimo com uma das testemunhas de acusação, um encontro homossexual inconfessável, insinuado por pessoas da assistência, ou marcas da brutalidade praticada, como defendia a promotoria. Os “chupões” são um dos pontos altos de polêmica do primeiro dia de acusações e uma das ambiguidades em torno dos quais se configuraria a disputa.

Enquanto as vidas cotidianas de vítima, co-réus e testemunhas eram recriadas e postas em exame para dar sentido àquela morte extraordinária, até o que é dado como certo cobria-se de ambiguidades. O tempo é colocado em disputa. O tempo dos procedimentos e diligências da justiça; o tempo em que os réus permaneceram presos durante as investigações; O Tempo, um dos jornais mineiros responsáveis pela cobertura do caso; e principalmente o tempo que deveria situar as ações e deslocamentos dos réus. Na noite do crime, a mudança do horário de verão teve o efeito de criar narrativas paralelas sobrepostas, como um borrão na reconstituição dos fatos, confundido versões já incertas dada a margem de várias horas delimitada pelos peritos para a hora mortis de Aline. Nesse fluxo, os advogados de defesa argumentavam que também era impossível se produzir um álibi se não havia acusações claras, ou segundo o jargão imputação genérica, falta de individualização da conduta. Descompassos entre um sistema penal voltado para culpas individuais e um mundo empírico no qual pessoas e ações diversas podem concorrer para uma prática legalmente sancionada. A disputa era também pelo tempo de jogo, dos operadores do direito conseguirem ou não apartes, de todos resistirem às horas arrastadas do julgamento, à fome e ao cansaço. A fronteira entre a assistência e o resto do julgamento era burlada por pacotes de bolacha, garrafas de refrigerante e comprimidos para dor de cabeça.

A quantidade de testemunhas e informantes (desobrigados de dizer a verdade) de acusação excediam as testemunhas de defesa. A oitiva mais aguardada no segundo dia era a da mãe de Aline, a quem foi dispendido um cuidado maior por parte de todos. No julgamento efetivava-se a metonímia de mãe e filha enquanto vítimas e as narrativas produziam sobreposições de imagens. Os jornalistas avidamente buscavam registrar Maria José, que tivera a filha imolada tal qual os personagens de quem recebera seu nome. Acima da cadeira da juíza, Jesus Cristo representado em sua cruz criava uma montagem das narrativas de morte. Enquanto Maria José expunha sua dor renovada por ter a vida já interrompida da filha também em julgamento, a juíza chorava discretamente desvelando a venda da Justiça em seu rosto de mulher.

Nos intervalos e final das sessões, aqueles que já haviam sido ouvidos podiam falar à imprensa. A defesa reuniu antigos colegas dos réus falando de sua convivência em Ouro Preto e uma professora da UFOP, que além das condutas dos réus defendeu também os jogos de RPG, sendo posteriormente chamada pelo assistente de promotoria de “doutora em artes cênicas e pós-doutora em artes cínicas”. Este depoimento também revelou a mobilização, em defesa dos réus, de alguns cursos da “federal”, que designou o então professor Marinho para defendê-los. O segundo dia foi o único em que a sessão não se aproximou da meia-noite, de modo que os jurados foram atendidos em sua solicitação de romper a incomunicabilidade para assistir ao jogo Cruzeiro X Grêmio, cujo empate alçou o time mineiro à final da Copa Libertadores da América.

No terceiro dia um a um foram ouvidos os co-réus, enquanto os outros aguardavam fora da sala. Seus corpos e vozes oscilavam entre o desespero, a tentativa de objetividade e a indignação. Um a um alegaram não saber de que estavam sendo acusados, fazendo com que a juíza ou o escrivão lessem a peça acusatória. Os três rapazes relataram a seqüência dos dias de outubro de 2001, entre a greve da universidade, as atividades artísticas e a vida em república. Contaram do encontro com a vítima e sua prima e dos dias posteriores à morte de Aline, descrevendo as ameaças recebidas. Todos enfatizavam o absurdo das acusações e da maneira como a investigação foi conduzida. Falavam também sobre o sofrimento de suas famílias e das dificuldades em construir uma vida sob o peso das acusações. O assistente da promotora perguntava sobre elementos do RPG que pudessem fazê-los falar sobre coisas semelhantes às imagens do crime.

A última a ser ouvida foi a prima de Aline, que fora fotografada rindo pelos jornais. De todos os acusados, ela foi quem mais recebeu atenção da mídia, quem passou mais tempo presa e de quem a assistência mais fala com convicção da culpa, amparados talvez pela violação dos vínculos familiares. Apenas a ela os jurados dirigiram perguntas, por escrito. Sua oitiva foi conduzida pelas brigas de família, pela relação com a vítima, pelos dias da visita a Ouro Preto que culminaram no assassinato não presenciado e pela falta de emoção demonstrada no enterro e as pressões da investigação.

No quarto e último dia de julgamento foram dispostas caixas arquivos amarelas, contendo as evidências recolhidas na república dos réus, no cemitério e nas ruas de Ouro Preto. A chamada gravada pelo repórter do Jornal Hoje avisa que seria exibida uma reportagem sobre os jogos de RPG, a pedido dos telespectadores pelo Twitter, ambiente de microblogagem na internet. É o twitter de uma ex-moradora da cidade que primeiro noticia o resultado do julgamento, na manhã do dia seguinte. Foi estabelecido que haveria nove horas de debate no total, mas entre réplicas e tréplicas o julgamento se estendeu madrugada adentro.

A promotora iniciou entregando aos jurados um volume encadernado com fotos de Aline e trechos dos autos do processo, que tem dez volumes e cerca de quatro mil laudas. As fotos da cena do crime foram exibidas em powerpoint na tela de um laptop, exibindo em luzes vermelhas o corpo de Aline, o que causa grande impacto e faz com que parte da assistência se aglomere do lado direito do salão para ver. Depois de sublinhar sua dedicação ao caso e competência, e apelar à comunidade católica de Ouro Preto, a promotora passou a questionar a defesa que se fez do RPG, enquanto havia “uma mãe chorando, família partida, e uma cidade patrimônio da humanidade e cheia de estudantes, que às vezes incomodam, mas são jovens. O jogo se tornou mais importante que uma morte”. Seus argumentos buscavam construir a inteligibilidade da morte a partir da extrapolação do jogo, realizando montagens entre o RPG, a Bíblia Satânica e o crime. Seu assistente, por sua vez, conclamava os jurados “Senhores jurados, após quase oito anos, chegou o dia de limpar a mancha de sangue que ficou em Ouro Preto com o manto da Justiça”. Um segundo assistente, indicado pela maçonaria a qual pertencera o avô de Aline, trouxe um tom melodramático e pitoresco ao debate, chamando os réus e o primeiro promotor que rejeitara o caso de “nerds”, e afirmando que “o jogo continua, mas não é o Vampiro, é um jogo construído pelo nerd Cassiano”. Em sua fala o RPG foi explicitamente caracterizado como uma ferramenta de arregimentação do demônio e de destruição de lares.

As falas da defesa usaram um tom de enunciação marcadamente racionalizante e didático, começando por conclamar a todos para “voltar à sanidade neste ambiente e trazer fatos concretos”. Em uma lousa, elaborou-se uma cronologia desde a chegada das primas a Ouro Preto até as investigações e depoimentos na delegacia em 2001 e 2002. As evidências, livros de RPG e gibis, foram menosprezadas em seu valor de prova, pois até mesmo os advogados tinham ítens semelhantes em suas casas. A estratégia passou a ser desqualificar o trabalho do Ministério Público falando sobre Direito Penal e acusando-os de retórica vazia e de delegar o trabalho de investigação à imprensa. O delegado foi acusado de usar o caso para autopromoção e para desviar a atenção dos processos aos quais ele mesmo respondia na época. A mãe de Aline foi descrita como alguém que foi terrivalmente enganada e a alguém que se deu falsas esperanças de justiça. Um dos advogados de defesa, um homem negro imponente, falou sobre a injustiça que se cometeu contra Tiradentes em Ouro Preto, e sobre crimes de preconceito como o que estava ocorrendo. O advogado da prima da vítima mencionou o caso do jornalista José Cleves da Silva, que sofreu linchamento moral por um crime do qual foi inocentado.

As quatro horas da manhã de domingo foram lidos os quesitos da acusação de homicídio triplamente qualificado. O salão foi esvaziado, e cerca de sessenta pessoas esperou diante do prédio do fórum pela sentença. No retorno, familiares subiam nos bancos para poder ver para além da muralha de filmadoras a leitura do primeiro quesito, que apontava a participação na prática do crime. Na ordem em que foram acusados e ouvidos, os co-réus foram absolvidos. Entre flashs, choros, preces, abraços, cumprimentos cordiais e entrevistas, o julgamento era encerrado e pouco aos poucos finalmente o Fórum foi esvaziando, enquanto surgia por entre os morros uma aurora morna para iluminar o dia.

Após testemunhar o longo julgamento que se iniciou em uma quarta-feira ao meio-dia e se encerrou ao nascer do sol de domingo, os grandes veículos da imprensa encerraram sua cobertura repetindo as acusações do Ministério Público e atribuindo à absolvição por falta de provas. Diferente é minha proposta, do qual este relato é apenas um primeiro ensaio, de contemplar o ritual do Tribunal do Júri do “caso Aline” como um esforço coletivo e fragmentado de rememoração, de retomar e salvar pela palavra um passado que, de outra forma, desapareceria no silêncio e no esquecimento.

Para citar este Artigo

  • Ana Letícia de Fiori, « Impressões etnográficas do Tribunal do Júri do assassinato de Aline Silveira Soares: o caso da morte do RPG », Ponto Urbe [Online], 5 | 2009, posto online no dia 31 Dezembro 2009, consultado o 19 Agosto 2015. URL : http://pontourbe.revues.org/1607